Controvérsias do IBGE

Li no “O COLINENSE” de 27/02/2020, pg. 5, a controvérsia do Prefeito Dieb Taha com o  IBGE a propósito da evolução da população de Colina na última década.

Em solidariedade ao Prefeito, e a Colina, ocorreu-me lembrar que já há mais de meio século tive embate assemelhado com o “modelo matemático” do IBGE, que contesta e menospreza nossos números atuais e patentes para população da Cidade no período  intercensitário 2010/2019, amarrando-os a taxas pretéritas, das décadas de 1980 e 1990.

Deu até crônica (inédita), da qual recorto o essencial:

A PARTE MAIOR DO QUE O TODO? (*)

‘(...) Na equipe dos pesquisadores amazônicos, coube a mim, ao final, a tarefa de organizar os dados recolhidos na amostragem para estimar o consumo per capita  (de café) de cada cidade e, por extensão, de cada estado. Tarefa complicada pela insuficiência dos dados demográficos, e mesmo suas contradições. Não é que, ao levantar os números de habitantes, em 1959, do Estado do Acre e de sua Capital, Rio Branco, descubro o impossível: a Capital tinha população superior à do Estado, embora neste incluída? Rio Branco tinha mais habitantes do que o Acre, ela própria considerada no cômputo relativo ao Estado. Para ser bem claro, em números figurados: Rio Branco 80.000; Acre, inclusive Rio Branco, 65.000. Seria como São Paulo, Capital, ser mais populosa que o Estado de São Paulo – Capital mais interior.

A parte maior do que o todo?

Pensei logo em erro gráfico, e fui ao próprio IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mas neste me confirmaram que a Capital era mesmo mais populosa que o Estado. Expliquei minhas razões para não entender, mas meus interlocutores foram irredutíveis, as tabelas originais, que chegaram a consultar, registravam aquela mesma suposta discrepância. Mas minha teimosia impertinente e inconformada deve ter intrigado alguém no Instituto, pois dias depois me telefona um senhor com título de Professor, nome arrevesado e sotaque alemão, meio autoritário: “Me disseram que o Senhor está questionando os dados do IBGE!”. Respondi que sim e expliquei por quê. Ele riu, e zombou, sarcástico, de minha ignorância: “Mas como o Senhor quer que seja de outra forma?” Em seguida, despejou sobre mim dados e fórmulas insondáveis, raciocínios matemáticos elaborados - daquela sabedoria peremptória  que faz entender menos ainda.

Troco em miúdos o que pude captar da aula arrogante; se o leitor não for burro, tal qual o autor, vai certamente entender como a parte pode ser maior do que o todo.

No intervalo entre os censos decenais, o IBGE estimava os dados relativos à população a partir do censo anterior, corrigindo-os anualmente à taxa de crescimento nas décadas àquele censo precedentes. Em outras palavras: o número levantado em 1950 era projetado até 1959 com base na taxa de crescimento apurada entre 1930 e 1950. Como naquele período 1930/1950 o ritmo de crescimento da Capital, Rio Branco, fora muito mais elevado do que o observado para o todo do Estado, o resultado das projeções fazia a Capital mais populosa do que o Estado que a abrangia!

Entenderam?

A parte maior do que o todo...

Os artifícios da estatística desafiam a lógica mais sólida, o bom-senso mais corriqueiro. Não por menos há tanta piada estatística... Como a do Manuel, que viajava de avião, sempre, com uma bomba na bagagem, pois os cálculos de probabilidade excluem a possibilidade de duas bombas coincidirem no mesmo voo, ou a do Joaquim, que viajava sempre com um laço amarrado no dedo, encorajado pela constatação estatística de que avião nenhum havia caído com um passageiro de barbante na mão.

Extravagância lógica equivalente à do Acre só me lembro de ter visto em Fernando Pessoa, mas nele sob licença poética, não estatística. Em seu paganismo metafísico, “num dia excessivamente nítido”, Alberto Caeiro ¹  entrevê “o que talvez seja aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam”:

 

 Vi que não há Natureza,

 Que Natureza não existe,

 Que há montes, vales, planícies,

 Que há árvores, flores, ervas,

 Que há rios e pedras,

 Mas que não há um todo a que isso pertença,

 Que um conjunto real e verdadeiro

 É uma doença de nossas ideias.

 A Natureza é partes sem um todo,

 Isto é talvez o mistério de que falam.

 

Com licença poética e religiosa, Gregório de Mattos²  (sim, o “Boca do Inferno”, por uma vez vate sacro!) explora igualmente a intrincada relação entre a parte e o todo para explicar os sacramentos católicos:

 

O todo sem parte não é todo,

A parte sem o todo não é parte,

Mas se a parte o faz todo, sendo parte,

Não se diga que é parte, sendo todo

 

Em todo sacramento está Deus todo,

E todo assiste inteiro em qualquer parte,

E feito em partes todo em toda parte,

Em qualquer parte sempre fica todo.

 

Só faltava citar o exercício do Padre Antonio Vieira³   em torno da totalidade da parte. Mas não consigo encontrar o sermão certo! O que ao cabo é melhor, pois do contrário vou acabar dando na Santíssima Trindade, que não é matéria para estas crônicas profanas.

Renato Prado Guimarães

 

¹ Um dos heterônimos de Fernando Pessoa, o grande (maior?) poeta português.

² Poeta satírico brasileiro, do Século XVII, conhecido por sua cáustica irreverência.

³ O Padre Antonio Vieira é autor de numerosos Sermões, inteligentes e  inspirados – e também engenhosos. Viveu no Século XVIII, no Brasil e em Portugal.  

(*) De CRôNICAS TARDIAS, MEMÓRIAS PRECOCES, versão concebida para o espanhol, e a América do Sul,  sob o título ”Rivales, sí, pero iguales!”; isso explica as anotações dispensáveis para o leitor brasileiro.  Textos inéditos. Quem quiser ler toda a crônica, que versa pesquisa de consumo de café na Amazônia, entre em contacto com rpguimar@gmail.com.

 


Postado em 07/03/2020
Por: A Redação
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