Imagine um universo onde nada é fixo, onde as propriedades das coisas só ganham sentido quando vistas em relação umas às outras. Essa não é apenas uma ideia poética, mas um conceito que permeia a física teórica, especialmente na mecânica quântica, através da teoria de variáveis ocultas relacionais. Nessa visão, o que uma partícula é ou faz não é determinado por características absolutas, mas pelas relações que ela estabelece com outras partículas. É uma dança cósmica onde tudo está interligado, e cada movimento, por menor que seja, pode alterar o curso dos eventos de maneiras inimagináveis.
Agora, traga essa ideia para o mundo em que vivemos, para as decisões que tomamos todos os dias. Pense em um jovem em um ônibus, absorto em seus pensamentos, que, por um impulso quase insignificante, decide levantar-se e conversar com o motorista. Segundos depois, um caminhão desgovernado colide com o veículo, destruindo o exato lugar onde ele estava sentado, uma cadeira que, se ainda ocupada, teria selado seu fim. Ou visualize dois pedestres caminhando lado a lado, prestes a atravessar uma rua, quando um deles se detém para apanhar algo no chão – uma moeda, talvez, ou um papel perdido. Esse breve atraso os salva de um carro em alta velocidade que invade a calçada, um impacto que os teria alcançado não fosse por aqueles instantes roubados ao tempo. São histórias reais de sobrevivência que, à primeira vista, parecem milagres ou pura sorte. Mas, sob um olhar mais aguçado, revelam algo mais profundo: a interconexão entre nossas escolhas e os eventos que nos cercam.
Na mecânica quântica, existe o conceito de beables, quantidades físicas objetivas que existem independentemente de serem observadas. São como os ingredientes básicos da realidade: energia, momento, posição. Na teoria de variáveis ocultas relacionais, esses beables são moldados pelas relações entre as entidades físicas. No caso do jovem no ônibus, sua decisão de se mover não mudou quem ele era, mas transformou sua posição em relação ao ponto de impacto – um beable relacional que decidiu seu destino. Da mesma forma, a pausa dos pedestres alterou o sincronismo deles com a trajetória do carro, redefinindo o beable temporal que os manteve vivos. Essas escolhas, internas e invisíveis a um observador externo, funcionam como variáveis ocultas: fatores que não podemos medir diretamente, mas que determinam o resultado de uma forma que transcende a casualidade aparente.
Essa perspectiva não é nova. Ela ecoa desde os tempos de Leibniz, que argumentava que o espaço não é um contêiner absoluto, mas algo definido pelas relações entre os objetos. Mach levou isso adiante, sugerindo que a inércia de um corpo só faz sentido em relação a outros corpos no universo. E Einstein, com sua teoria da relatividade, mostrou que o espaço-tempo é dinâmico, moldado pela matéria e energia nele presentes. Todos eles, de alguma forma, rejeitaram a ideia de uma estrutura fixa e imutável, abraçando a noção de que a realidade é relacional.
Agora, o que isso significa para nós, seres humanos que não somos partículas subatômicas, mas indivíduos em um mundo macroscopicamente caótico? Significa que, assim como no mundo quântico, nossas vidas são moldadas por interações, por contextos, por relações. Aquele movimento no ônibus ou a pausa na calçada não foram atos isolados; foram gestos que reposicionaram os indivíduos dentro de uma teia de relações, alterando os beables que governaram seus desfechos. Nossas decisões, por mais triviais que pareçam, podem ser as variáveis ocultas que determinam se estamos no lugar certo ou errado, no momento exato ou fatal.
Mas isso levanta uma questão perturbadora: será que nossas vidas são regidas por um determinismo oculto, onde cada escolha está de alguma forma predestinada? Ou será que há espaço para o livre-arbítrio, para a aleatoriedade genuína? Na mecânica quântica, o debate sobre determinismo versus probabilidade é antigo e ainda não resolvido. Analogamente, em nossas vidas, podemos ver nossas ações como parte de um equilíbrio complexo entre escolha e circunstância, onde a incerteza é inerente, assim como no princípio da incerteza de Heisenberg.
Talvez a resposta esteja em aceitar que vivemos em um universo onde tudo está interconectado, onde cada decisão, cada passo, cada pausa, ressoa através de uma rede de relações que define quem somos e o que nos acontece. Assim como uma partícula não possui propriedades isoladas, mas é co-definida por suas interações, nós também existimos em um emaranhado de conexões: com os outros, com o ambiente, com o fluxo inexorável do tempo.
Essas histórias de sobrevivência nos permitem refletir sobre a fragilidade e a beleza dessa interconexão. Elas sugerem que, em um nível fundamental, o universo não é um palco de entidades fixas, mas um fluxo de interdependências. Nossas escolhas, como variáveis ocultas, moldam os beables relacionais da nossa vida – posição, tempo, proximidade – de formas que só se revelam quando o perigo passa ou a cortina cai. E talvez, ao entender isso, possamos enxergar a profundidade escondida em cada gesto, em cada momento, reconhecendo que habitamos um cosmos onde tudo está conectado, e onde o próximo passo pode ser o que nos define.

Dr. José Reynaldo W. de Almeida
Neurocirurgia e Neurologia
CRM: 28475
RQE: 20057 / 20159
