A primeira da minha vida, até por uma questão natural, foi minha mãe. Minha mais remota lembrança dela é de quando se debruçava sobre o meu berço com a mamadeira à noite, ao deitar-se. Mamadeira improvisada, uma garrafa de algum refrigerante com um bico borrachudo avermelhado. Enquanto sugava o leite quentinho, podia sentir sua mão áspera afagando meus cabelos. Só mais crescido fui entender aquela aspereza, pude valorizar cada gesto daquelas mãos afetadas pela soda do sabão na lavação de roupas “para fora”. Ainda hoje sinto um misto de angústia e felicidade com aquela imagem da minha mãe atravessando a praça da cidade, lépida, altiva, com uma imensa trouxa de roupas a ser entregue a alguém e voltando para casa com o dinheiro do pão de cada dia, certa de que fazia o melhor para ver seus filhos crescerem com dignidade e um naco de esperança. Freguesas não faltavam. Da dona Rute, da empresa de ônibus à professora Carmelita, todas requisitavam o serviço da “Maria lavadeira”.
Na escola, os primeiros riscos, as primeiras “bolinhas” com perninhas para cima ou para baixo, que me permitiam identificar se falava de homem ou de mulher, me foram ensinados por uma professora de gestos serenos e decisões firmes. Não tolerava indisciplina, mas o seu carinho nos confortava. Séria, sempre; mau humorada, nunca. Ainda hoje posso vê-la em sua mesa, com os óculos de leitura disfarçando o olhar mirando a classe. Era eu o menino traquinas em sua lente que, depois da bronca, caprichava na lição e ganhava um sorriso alvo e sincero dona Maria Arruda Pastana.
Ao longo da história, o filho de Deus, por sinal, foi privilegiado. Não bastava à sua mãe ser linda, fraterna e dedicada, tinha também de se chamar Maria. Foi por ela que o mundo se encheu de Marias. Mulheres que conheço, mulheres que não conheço, mulheres que falam e fazem, mulheres que falam mais do que fazem, mulheres com mil motivos para chorar, mulheres que choram sem motivo algum, mulheres que riem à toa. Mulheres que geram filhos e educam, mulheres que educam filhos de outras mulheres, mulheres que nem geram nem educam filho nenhum. Mulheres que amam como a si mesmas, mulheres que odeiam como se outra fossem. Marias que aprendem, Marias que ensinam, Marias que rezam, Marias que compreendem, Marias incompreendidas. Marias que zelam, Marias que torcem, que sofrem, que esperam.
Maria que virou erva santa, que cura tudo: quebranto, mau olhado, desencanto. Maria que acredita, que luta, labuta, cobra, ajuda, nada fala, tudo escuta. Maria que pensa, age, faz acontecer. Maria que escreve, diz alto o que quer dizer. Maria que é chefe sem amiga deixar de ser. Maria que tem sua marca, seu próprio jeito de ser. Maria que quando vai, tem jeito de não querer. Maria que faz no tempo, saudade sobreviver.
À professora Maria Pastana, pelos seus 90 anos de vida e de contribuição ao saber.
Publicada originalmente no Jornal Tribuna Impressa, de Araraquara, em março de 2004.