Reflexão

NÓS, A ORCA E A INVENÇÃO DA MORDIDA

Dr. José Reynaldo Walther de Almeida
CRM 28475 SP
RQE 20057 RQE 20159

Houve um momento na história da Terra, há cerca de 541 milhões de anos, em que a paz acabou. Antes disso, no período Ediacarano, a vida era um “jardim” de seres de corpo mole, filtradores e pastadores, vivendo em uma letargia pacífica. Não havia olhos complexos porque não havia o que vigiar. Não havia carapaças porque não havia quem atacasse.Então, algo mudou. Aconteceu a Explosão Cambriana.
Alguém, pela primeira vez, aprendeu a comer o vizinho. A invenção da predação foi o evento singular que encerrou a estase evolutiva e iniciou uma corrida armamentista frenética em direção à complexidade. Olhos surgiram para detectar o perigo; sistemas nervosos evoluíram para prever movimentos; cérebros cresceram para orquestrar a fuga ou o ataque.
É desconfortável admitir, mas a inteligência é filha da violência. Nós somos descendentes diretos não dos pacíficos, mas daqueles que conseguiram fugir mais rápido ou caçar melhor. Quem matava melhor.
E isso me traz uma lembrança inquietante. Vocês se lembram de Tilikum? A orca do SeaWorld que, em 2010, puxou sua treinadora, Dawn Brancheau, para o fundo do tanque, causando sua morte. Durante anos, Tilikum fez truques, acenou para a plateia e pareceu “civilizado”. Nós projetamos nele nossa humanidade, chamamos de “amigo”. Mas, naquele dia, o verniz do treinamento rompeu.
O erro de análise que cometemos com Tilikum é o mesmo que cometemos ao nos olharmos no espelho.
Nós gostamos de pensar que somos a treinadora: racionais, controlados, mestres da situação. Mas a neurociência e a evolução sussurram uma verdade mais sombria: nós somos a orca.
Carregamos, na arquitetura profunda do nosso sistema límbico, os mesmos circuitos de predação que foram forjados no Cambriano. A necessidade de dominar, de adquirir, de vencer. A civilização, com suas leis e etiquetas, é apenas o “tanque” de vidro — uma contenção frágil criada pelo nosso córtex pré-frontal para inibir a besta ancestral.
Mas o instinto não desaparece; ele apenas muda de alvo. Hoje, não caçamos gazelas. A nossa predação foi sublimada. Ela aparece na reunião de diretoria onde um colega destrói a reputação do outro por esporte. Aparece no bullying digital. Aparece na forma como acumulamos recursos muito além da necessidade de sobrevivência. É a velha fome do Cambriano, vestida de terno e gravata, ou escondida atrás de uma tela de smartphone.
Escrevo isso com o coração misturado de incertezas. Olho para a complexidade do cérebro humano e vejo a maravilha, mas também vejo o perigo.
A pergunta que deixo para vocês hoje não é se somos capazes de ferir. A biologia diz que sim. A pergunta é: como você está gastando a sua energia predatória? Você a usa para caçar problemas, superar desafios e proteger os seus? Ou você é apenas uma orca entediada no tanque, esperando o momento de puxar alguém para o fundo?
A jaula é frágil. Cuidado com o que vive dentro dela.