Do Embaixador de Portugal Francisco Seixas da Costa, recebi um livro de sua autoria, “Tanto Mar”, obra de admirar, pela riqueza do conteúdo e o encanto da linguagem; esplêndida leitura. É um relato de sua missão no Brasil, sobre o Brasil, Brasil e Portugal, Brasil e Europa. O Brasil transparece melhor através de seus olhos, embora não ignorem, estes, intérpretes argutos, nossos defeitos múltiplos e rasgos obscuros, ainda indefinidos. E a escrita é sempre a do cronista, nítida, corrente, amena, constante, provocativa, seja a matéria uma análise econômica, um comentário político, um quase-ensaio histórico, uma entrevista aos jornais ou à televisão.
Detive-me especialmente nas páginas que dedica a revisitar D. João VI e à transferência das cortes[1], denunciando a injustiça que a História comete para com o monarca, tanto em Portugal quanto no Brasil. Em nosso caso, foi sem dúvida ignóbil o que se fez para manchar a imagem do rei nos anos 1970/80, em particular na televisão e no cinema. Muito me bati contra isso, indignado, surpreendendo os amigos com a tese de que o pançudo D. João, que lambia nas mãos a gordura dos frangos que devorava, embora medroso e hesitante foi um espertíssimo estadista, se medido pelos resultados. Muita gente boa, ele pôs no chinelo (ou nas chinelas, aquelas sujas e soltas das caricaturas…). Ad absurdum, eu dizia que fora melhor estrategista do que Napoleão, a figura histórica dominante de seu tempo. Afinal, o francês não conseguiu destroná-lo, como fizera com tantos dos demais monarcas europeus, e quando o português voltou a reinar a partir de Lisboa, Bonaparte estava morrendo, sem trono e glória, ao fim de seu duro exílio insular. De chinelas o Bragança ganhou a parada europeia e, de sobra, en passant, criou uma nação de dimensão continental.
De acordo, pois, com meu colega português na defesa de D. João. Só me ocorre uma reserva, quando se refere a que a má vontade ante o Rei, no Brasil, vem “em boa parte para compensar, pela ironia, a necessidade de terem de reconhecer a importância daquilo que o Brasil lhe deve” (pg. 171), ou “da necessidade psicológica de compensar, pela acidez da crítica, o imperativo de reconhecer os efeitos altamente positivos que, para o Brasil, derivaram desse mesmo tempo histórico” (pg. 166).
Discordo por duas ordens de razão: 1) não é do feitio do brasileiro, com todos os seus defeitos, desfazer de quem lhe traz benefício; 2) muito pouca gente sabe e avalia com justa medida o que D. João fez pelo Brasil – não por menosprezo, mas sim por simples e crassa ignorância histórica. Não haveria por que tirar vingança do que não se conhece. Na medida em que a historiografia recente o vai revelando sob luz mais favorável, sua imagem na memória do povo vai mudando para melhor – nitidamente, como o próprio Embaixador assinala em diversas passagens do livro. E sem ressentimentos.
D. João caiu no ridículo por ser vulnerável ao deboche, a ironia suprema dos povos – no caso brasileiro, deboche perversamente saboroso, apimentado por uma geração mercenária de marqueteiros da TV. Caricato, sim, mas nem sei se no Brasil lhe caberia a pecha de “mal-amado” com que seria estigmatizado em Portugal.
Na América se ensina aos executivos que devem sempre procurar, de seus subordinados, serem por eles respeitados, e/ou admirados e/ou queridos. De nossos três monarcas, acho que na consciência nacional ficou, ainda que esgarçado, o sentimento de que D. João não foi respeitado nem admirado, à época, mas foi, sim, em alguma medida genuinamente querido, em sua bonomia relaxada e relaxante, reveladora de suas fraquezas, risíveis mas humanas e transparentes; D. Pedro I foi muito admirado por seus feitos, de espada[2], cavalos, boemia e mulheres, mas nem sempre foi respeitado, nem propriamente querido, fugaz, sempre, e encurralado entre duas lealdades exigentes: a adotada, ao Brasil, e a do nascimento, a Portugal; D. Pedro II foi respeitado e admirado deveras, por sua austeridade e sabedoria, mas difícil saber se chegou a ser precisamente querido, na distância meio arrogante de scholar tropical com que se colocava ante seus súditos, carentes menos de erudição do que de comunicação, afeto e reconhecimento.
Com defeitos e debilidades, sim, todos, mas nenhum foi odiado, ou desprezado, nem mesmo propriamente hostilizado pela nação como um todo. A nenhum se poderia aplicar o adjetivo do “mal-amado”; ao contrário, foram todos de valia essencial, decisiva, para o Brasil, cada um a seu tempo – e sempre no tempo certo! Providencialmente: Pedro II, conservador e negociador cauteloso, não teria proclamado a Independência; Pedro I, intrépido e audacioso, ao ponto da temeridade, não teria fugido de Napoleão e transferido as Cortes, mas sim enfrentado as tropas invasoras – que, guerreiro competente, teria podido vencer e repelir, tão debilitadas chegaram a Lisboa; D. João, astuto mas culturalmente bisonho, não teria sido capaz de gerir como seu neto a consolidação do país gigante e unido cujas sementes havia plantado. Se não tiveram esse reconhecimento, em seu tempo, avaliados retrospectivamente merecem decerto admiração, respeito e afeto, os três, em função de sua contribuição crucial, agora tão nítida, para o Brasil que hoje somos.
São observações mais intuitivas do que objetivas – sentimentos antes que pensamentos, impressões mais do que conclusões. Comentários impulsivos de cronista, não registros cautelosos de historiador…
Mas que D. João não foi um mero frangueiro de chinelas descambadas, isso não foi.
Que o diga Napoleão, de dentro delas!
Afinal, como o francês reconheceria, em suas memórias, ditadas em Santa Helena, “ele foi o único que me enganou”.
Renato Prado Guimarães
Embaixador do Brasil, Aposentado
[1] Ante a invasão das tropas napoleônicas, em 1808, D. João VI, Rei de Portugal, transferiu-se para o Brasil, com toda a sua Corte e a administração central portuguesa. A esse gesto se atribui a emergência do Brasil como nação autônoma. Seu filho Pedro I proclamaria a independência do País, Pedro II, o neto, reinaria por décadas no Século XIX, assegurando com pertinácia e sabedoria a unidade do imenso território trazido à História pelo avô fugido da Europa. (Nota: Esse lembrete se deve a que o público-alvo dessas crônicas é o vizinho sul-americano).
[2] Pedro I, do Brasil, IV de Portugal, foi chamado de “Rei Soldado”. Em 1826, os liberais espanhóis o convidaram para com eles derrubar a coroa de Madri – e assumi-la. Ainda em 1822, antes da Independência brasileira, os gregos lhe ofereceram o trono de “Rei dos Helenos” contando com sua espada e prestígio para consolidar a recente libertação do jugo otomano. O “Imperador das Quatro Coroas” é o título de biografia de autoria de meu falecido chefe em Washigton, Embaixador Sérgio Correa da Costa, um dos mais competentes diplomatas brasileiros no século passado.